HUÉ – CAPITAL IMPERIAL DO VIETNAM DEVASTADA PELA GUERRA

Até então, não tínhamos pegado nenhum trem no Vietnam. Acontece que o país é uma tripa comprida, dominada por algumas empresas de ônibus que oferecem um ticket muito interessante – de norte a sul, de sul a norte – em ônibus leito. Você compra o ticket de Hanói a Ho Chi Minh, e combina com a empresa quantas paradas vai fazer. Um jeito muito prático de viajar.

Acontece que o casal aqui é cabeça dura independente, e qualquer menção a agência que “organiza” a vida já nos repele. Decidimos então, saindo de Tam Coc, seguir viagem a Hué do modo povo vietnamita. O que quer dizer: usar o trem.

Quem viaja pelo mundo já deve ter lido o blog do The Man in the Seat 61 – a maior compilação de trens do mundo. É realmente incrível, superatualizado, confiável. Usamos para caramba na China, para decifrar as estações. O que ele dizia sobre o Vietnam: use o trem SE1, SE2, SE3, SE4, são os mais novos. Único problema: tais trens passavam por Ninh Binh na madrugada – e a gente refere viajar sempre de dia. Ok, vamos de SE7, intermediário.

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Olha o SE7 chegando aí!

O que o site esqueceu de dizer é que “intermediário” para trens no Vietnam é sinônimo de trem lento, sujo, velho, com banheiro imundo, cuja porta não fecha. E que, de Ninh Binh a Hué, você vai ficar 11h25min em companhia dos tiozinhos que acham supernormal tirar os sapatos e expor as unhas dos pés pra galera. Ah, e mais uns mochileiros, que temos companhia na cabeça dura 😉 .

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Sente a turma 😉

Esta foi, sem qualquer dúvida, o deslocamento mais LENTO, mais DEMORADO, e mais DESAGRADÁVEL de todos que fizemos em toda a viagem. Talvez em toda a vida. (Aposto que os colegas que rodaram o mundo por mais tempo têm outros trechos difíceis para contar – fala aí nos comentários!)

Chegamos em Hué, lá pelas 18h, exaustos e ainda cientes de que havia um esquema forte de taxistas para pegar turistas na estação. Cruzamos todos os que se ofereciam na porta de saída do trem e fomos até o estacionamento, onde encontramos um táxi bem sinalizado, que deixava um passageiro. (Uma coisa a se lembrar, para não se sentir tão enganado, que um taxista regular normalmente fica dentro do táxi – quem para na saída do trem é sempre um vendedor comissionado que pode inflar o seu preço.)

Desembarcamos do táxi para o maior sorriso do mundo: todas as avaliações do Sunny Fine no Booking falavam que o hotel era bom, mas o dono, Toan, melhor ainda. Após 11h25 de esforço para não prestar atenção à sujeira por todos os lados, fomos calorosamente recebidos, abraçados, acolhidos, num hotel que é uma casa (e, como numa casa vietnamita, tem que tirar os sapatos para entrar!). Ufa! Deixamos as malas e imploramos – após tanta comida local dos últimos dias – “onde existe uma pizzaria?” .

Não era hora de miserê. O miserê tinha ficado na primeira parte do dia. O Toan prontamente sacou um mapa, circulou nossas opções e nos recomendou um restaurante na rua de trás do hotel – para o qual rumamos, bem felizes de alguém ter organizado a nossa vida em algum momento da viagem (e deixando de ser tão cabeça dura).

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Vista do Rio do Perfume (quer nome mais lindo do que esse) com o centro antigo ao fundo

Hué é a antiga capital do Império do Vietnam. Cidade onde também se sentaram os Imperador do período da dominação francesa – aqueles marionetes, que apenas serviam para dar a ilusão à população de que o Vietnam não era uma colônia. Como já falei aqui, quanto mais falso é um governo, mais pomposo ele se impõe: em Hué podemos ver a glória dos palácios e mausoléus onde vivam os Imperadores da época.

Ali perto também ficam os túneis usados durante a Guerra da Opressão Americana pelos vietnamitas do norte – hoje, são atração turística. Eram a principal razão para visitarmos Hué, mas tomei um banho de água fria ao saber que, na estação das monções em que nos encontrávamos, eles não eram recomendados. Principalmente com crianças.

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Rickshaws a postos para deleite dos turistas menos atléticos 😛

Meio sem saber o que fazer a partir do banho, resolvemos seguir ovelhamente a indicação do Toan – conhecer o centro histórico num dia, os mausoléus no outro. A ideia era aproveitar o terceiro dia numa motinho para fazer render o tempo e conseguir ver a parte rural de Hué em mais detalhe.

A CITADELA DE HUÉ

Decidimos seguir caminhando do hotel à Citadela para ir vendo a cidade – mas, no caminho, indignados motoristas de rickshaw e condutores de barco nos abordavam a cada 5 min para oferecer um passeio. Um deles não se conformou que não queríamos sua ajuda, e fez de tudo para mostrar que não seria possível conhecer a Citadela sem um rickshaw.

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Um condutor de rick shaw tentando vender seu peixe para o Fernando em Hué. O preço, que a princípio era para nós três, no final da conversa virou “por pessoa” – e ele nos seguiu por milhares de quadras, tentando nos convencer, até que desistiu

Mesmo assim, seguimos adiante, porque à pé é que se vai.

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Porque a pé é que se vê, no fosso da Citadela, um pescador de capacete

A Citadela era antes o trono dos Imperador vietnamitas desde 1803, e foi duramente bombardeada durante a Guerra com os EUA. Há que se lembrar que a fronteira entre os dois Vietnams ficava ali pertinho (a chamada Zona Desmilitarizada, que de militares estava era cheia), e que muitos dos embates ocorreram justamente naquela região.

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A imponência da entrada da Citadela e seu fosso

O resultado disso é que pouquíssimas estruturas sobreviveram o bombardeio que veio – entre outras coisas – para desmoralizar o sentimento nacionalista da época. Somente uma pequena parte do que era a grandiosidade daqueles palácios pode ser vista hoje. Um vídeo, na primeira estrutura, recompõe o cenário anterior.

A Citadela é, na maior parte, um grande descampado. Lá dentro, aqui e ali, algumas peças conseguem dar uma ideia do que era a vida da corte. Pode-se ver a influência chinesa dos corredores cobertos, e o riquíssimo e colorida trabalho em mosaicos que adorna os telhados. Os símbolos de dragão estão por toda parte.

Lá pelas tantas, encontramos o antigo jardim, único lugar em que as mulheres da corte podiam passear (sim, apesar de ter sido uma cultura rural matriarcal, a estrutura de poder era patriarcal). Num dos tanques, um cardume laranja se alvoroçava apenas com a chegada de uma figura à margem: o que me fez lembrar o quanto somos condicionados à ação pela repetição da história (mas vou falar disso mais longamente em outro texto).

Andando pela Citadela foi a primeira vez, desde que desembarcamos no Vietnam, que entendemos a real dimensão da Guerra para o povo Vietnamita. Foi ali que me dei conta do quanto uma cultura imponente, antiga, desenvolvida, havia sido esmagada até a quase aniquilação por uma das maiores potências mundiais, com a desculpa de salvar o mundo de uma invasão comunista.

Andando por entre paredes e mais paredes em ruínas, que outrora eram pintadas, coloridas e protegiam o que o Vietnam tinha de cultura (ainda que das elites), começou dentro de mim um sentimento de empatia com esse povo – algo que começou no Museu Militar de Hanói e chegaria ao seu ápice no Museu Reminescênias da Guerra em Ho Chi Minh, que, de tão comovente, não consegui fotografar.

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Um lindíssimo jardim de bonsais

Quando estávamos saindo, entramos à esquerda pelo que antes era uma ponte, para um jardim de bonsais, lindíssimo. Percebe-se aqui a influência japonesa, que tentou e tenta se estabelecer como um contraponto à influência chinesa na região. O Vietnam foi o país em que mais encontramos bonsais, tão frequentemente que poderiam ser tidos como “comuns”.

A COMIDA DE HUÉ

Saímos com fome – já eram mais de 13h. Começamos com um petisco de rua – bolinho de banana frito ali mesmo. Mas era pouco para a fome.

O Tripadvisor indicava que ali próximo havia um restaurante barato, cujo dono era a própria razão de irmos. Não decepcionou: comemos um dos melhores pratos da viagem e, de quebra, vimos a performance do dono mudo e seu abridor de garrafas (ganhamos um abridor, mas tivemos que doar mais para a frente, por conta do peso).

Terminava o dia. Voltamos ao hotel para decidirmos o que fazer – e, no caminho, vimos o único acidente da viagem. Uma bicicleta elétrica foi atingida por um carro, e a moça foi ao chão. É de se espantar que, em 95 dias na Ásia, tenhamos visto apenas um acidente. Eles realmente conseguem se achar na confusão que é o seu trânsito.

UMA AMIZADE LATINOAMERICANA NO VIETNAM

A rua amanheceu encharcada de chuva monçoniana, colocando nossos planos de motinhos em outros planos. Descemos para tomar o café da manhã do hotel e pensar numa solução para a crise turística pela frente. O que fazer?

Enquanto tomávamos lentamente o café gelado e nos empanturrávamos de banh mí, entra uma moça de olhos amendoados, pele branca e cabelos muito pretos, mochila nas costas. “Tem quartos disponíveis?” pergunta, com um distinguível sotaque latino, ao que o Toan responde “você tem reserva?”. A moça não tinha reserva, mas o hotel tinha vagas, e ambos desaparecem escada cada acima para ver o quarto.

A chuva só piora.

Toan desce em companhia de um casal. Vejo o marido chamar a moça de Cristina. Penso “latinos”, óbvio. Eles também querem ir aos Mausoléus, e começam uma conversa em português bem ali, ao nosso lado.

Por fim, são brasileiros. Não apenas brasileiros, mas gaúchos. Não apenas gaúchos, mas portoalegrenses, como eu! E fomos nos encontrar no Vietnam!

Toan logo percebe a possibilidade de fazer negócio: “que tal vocês vão juntos aos mausoléus? Podemos alugar um carro grande!”. A viajante solitária desce e – pasmem – é Argentina. “Quer ir conosco?”. Ela aceita de bom grado.

O carro chega e a trupe se encaminha aos mausoléus.

 

OS MAUSOLÉUS

Para uma pessoa se tornar rei, presidente, imperador, presidente do grêmio estudantil, líder da associação do bairro, uma certa dose de egocentrismo é necessária. Antes de convencer aos outros que é uma boa opção de liderança, o ser precisa estar convencido do mesmo. Precisa estar convencido de que é a melhor opção entre as opções disponíveis – o que, por fim, é um grau de egocentrismo inerente à liderança.

Obviamente, entre ser líder de uma ONG e Imperador de um país há uma grande diferença. Assim, vemos os líderes de ONGs aceitando a alternância de poder, e os Imperadores lutando com todas as forças para permanecer no trono. O egocentrismo dos Imperadores é tão grande que eles não apenas se preocupam com o poder enquanto vivos: precisam se manter relevantes e apoderados no pós-vida.

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Constroem mausoléus de todos os tipos: pirâmides no Egito, Exércitos de Terracota na China, Mausoléus de vários níveis no Vietnam, estátuas mostrando os súditos em quatros continentes na Inglaterra, lápides trabalhadas nos cemitérios no Brasil (ops! até aqui queremos nos manter relevantes no pós-vida).

Não tendo muito mais o que fazer, pois a administração do Estado estava a cargo dos franceses, os últimos Imperador vietnamitas levaram ao limite a tradição local dos mausoléus confucianos (em vários níveis, cada um mais imponente que o anterior, onde se privilegia a ordem do homem sobre a natureza).

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Mandarins guardando a entrada do Mausoléu Minh Mang

O primeiro mausoléu que visitamos foi do Imperador Minh Mang. Sóbrio, com um parque lindíssimo e poucos turistas. Ele se estende por pequenas colinas que ajudam a compor o cenário e deve ser maravilhoso cenário para um piquenique num dia ensolarado.

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As primeiras salas são apenas a preparação para a pirâmide onde o Imperador está enterrado (pirâmide a que os turistas não têm acesso e fica na parte traseira do complexo), e vão se sucedendo em pompa. É tudo muito chinês: paredes de laca vermelha, telhado amarelo representando o imperador (era a cor dos imperadores chineses também).

De lá, seguimos para o mausoléu do Imperador Khai Định, que foi o último Imperador a construir mausoléus em Hué. Sua construção, que deveria servir como mausoléu e monumento, levou 11 anos e foi custeada por uma elevação de 30% nos impostos.

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Um mausoléu e uma enxurrada

Quando chegamos ali, uma chuva torrencial caia – daquelas que forma poças tão grandes nas quais se pode nadar. Presos dentro do carro, ficamos esperando a enchente vertical passar. E nada. Determinada hora, o Guilherme se irrita, veste sua capa de chuva, e vai.

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Quer uma ideia da água que estava caindo?

Vemos ele subir as escadas transformadas em cachoeiras e desaparecer. Continuamos conversando, até que as mulheres se animam: estamos aqui, o que é um pouco de água. Colocamos as capas de chuva, meros adornos decorativos frente à imensidão de água por todos os lados, e seguimos.

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Quanto mais “inútil” era o governante vietnamita, com mais poma e circunstâncias ele reinava. Substituía o poder legítimo – que estava nas mãos dos franceses – pelo poder alegórico do ouro e pedras preciosas. Mausoléu do Imperador Khải Định, em Hué, a capital Imperial.

A vista do mausoléu recompensa a molhaceira. De fato, é o monumento mais requitado e elaborado que encontramos – e também o que mais se aproxima dos ideais de beleza franceses, visto que este era um dos Imperadores Marionete.

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O interior de Hué – imagina de moto?

Quando saímos do Mausoléu, a nuvem está passando, e a paisagem ao redor é incrível. Fico apenas pensando o que teríamos visto caso o tempo fosse mais firme e pudéssemos ter alugado a motinho.

Mas voltamos ao carro e com ele seguimos para o restaurante próximo ao hotel, que faz um suco cheio de gelo triturado, que mais parece um milk-shake. Barriga cheia, voltamos ao hotel para descansar e esperar a noite chegar.

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Tchau, mandarins!

No dia seguinte, decidimos seguir viagem para Hoi An, insistentemente recomendada pelo nosso amigo alemão. O ônibus leito levará 4h horas para chegar lá, tempo suficiente para fazer um balanço dos dois meses que já estávamos em viagem.

Hoi An foi o ponto altíssimo da nossa estadia no Vietnam. Mas essa história fica para outro dia!

 

Com este post, estamos chegando ao meio da nossa estadia no Vietnam! Quer ver os nossos relatos já publicados?

jiuzhaigou galho sobre lago azul outono

Chegando a Hanói: viemos por terra, de ônibus, desde Nanning na China. Aqui eu conto como é a travessia e mostro um pouco da bela paisagem do trajeto.

Hanói: Museu de Belas Artes e Templo da Literatura / Passeio com o Hanoi Kids para entender a cultura e o povo vietnamita (com direito ao museu Etnográfico e café com ovo!)

Halong Bay: fizemos um cruzeiro de duas noites, com uma noite em um resort numa pequena ilha na baía de Cat Ba.

Tam Coc: um dos lugares mais impressionantes de toda a viagem, com rios que cruzam cavernas embaixo de montanhas, e que se podem visitar de barco.

 

O Vietnam foi um dos países que mais nos causou aprendizados e mudanças pessoais. Dá uma olhada no que já foi publicado na categoria Viajando e Aprendendo:

templo budista tibetano china

Está pensando em ir ao Vietnam? Aqui tem 12 coisas que você precisa saber antes de pisar por lá!

Felicidade está nos olhos de quem vê – uma das revelações mais profundas da viagem e que aprendemos durante a nossa passagem pela tal praia paradisíaca de Halong Bay.

Empatia é algo que você pode desenvolver numa viagem a um lugar onde não seja maioria (e o Vietnam é um bom começo!).

Foi em terras vietnamitas que fizemos um balanço dos nossos primeiros 2 meses na estrada.

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2 comentários sobre “HUÉ – CAPITAL IMPERIAL DO VIETNAM DEVASTADA PELA GUERRA

  1. Ameiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii, SENSACIONAL O RELATO DE VCS,,, MAIS QUE PARABENSSSSSSSSSSS, estava até pensando em ir para o Laos ou Camboja,,, to desistindo,,, acho que um mês dá só pra la….incrível!!!! Muito obrigado,,, e outra,,, rsrsrsr eu vou entre as moncoes tb,,, 13-06 a 13-07,,, chove muito,,, a ponto de atrapalhar demais,,, pq se for calor e chover!!! Acho até bom!!!! Muitooooooooooooooooo obrigado e para bens milssss vezes!!!

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