Só quem se mudou 11 vezes vai entender o que eu digo: é difícil sentir-se parte. Quando você chega numa cidade nova, tudo é estrangeiro (não você, você é local). O resto todo, os semáforos, as árvores, a cor das paredes, a temperatura da cerveja, quantas vezes se brinda: tudo é estrangeiro.
O maior gasto de energia de um local em uma cidade estrangeira é em localizar-se. Morando, não viajando, o local precisa localizar-se o mais rápido possível, sob pena de passar a ser um estrangeiro em breve. Após 11 mudanças, sabemos como localizar-nos, mas às vezes, simplesmente, as coisas não vão como os nossos planos.
Assim foi em Lins. A localização levou bem mais tempo do que o previsto. Nada particular a respeito da cidade, só não aconteceu. Talvez um círculo muito forte na cidade anterior tenha dificultado a localização. A sensação de desconfiança generalizada adicionando desconforto. Tanta cana-de-açúcar por todos os lados. Nenhum mato na estrada, fazenda, fazenda, fazenda. Planícies. O Fernando tinha aula todos os sábados, o sábado inteiro. Eu e a Sara ficávamos sem carro. A cada dia, sentíamo-nos mais estrangeiros.
Não havia algo em Lins com o que nos amarrássemos. Então flutuávamos, soltos, com os pés fora do chão, sempre um pouco angustiados, um pouco ansiosos, não conseguindo localizar-nos em meio a tudo aquilo que era tão estrangeiro. Nada ficava local.
Então, chegando ao final do primeiro ano, encontramos a beleza. Ela se abriu sob a forma enfática, louca, equilibrada, vibrante de uma orquestra de jovens e seu coro. Encontrar, em meio àquela terra agreste, em meio a tanta música sertaneja, tanta cerveja e churrasco, algo tão fugaz quanto um conjunto de pessoas que se reúnem e fazem música, música erudita, de tempos em tempos, foi arrebatador.
Lembro que, na primeira apresentação do coro a que assisti, me arrepiei completamente, como se estivesse vendo algo de fora do mundo. Chorei quando descobri que minha colega era Solista. Fiquei com medo por ela antes de se apresentar – pensei, inadvertidamente, pode desafinar. Terei vergonha alheia, este sentimento dos novos tempos mais empáticos? Não desafinou. Ao contrário: chamada de patinho feio pelo Maestro-Pianista, era um cisne que cantava ali. Estava eu, sozinha, mas fincando meus pés no chão. Existia algo ali muito local, muito caseiro. Algo com o qual eu me relacionava.
O coro cantou o Coro dos Ciganos e eu estava vendida. Nada mais belo havia entrado na minha vida no último ano. Nada mais havia agitado meu coração e me feito esquecer do dia-a-dia, do que aguentava por parecer não ter onde ir. Nada mais me provocava a viver como o Coro Sinfônico de Lins.
Dois dias depois, a Orquestra Sinfônica Jovem de Lins se apresentava. Junto ao Coro.
Foi como se afogar numa onda gigantesca, depois de nadar 1000 metros. Pensei: isso aqui dá vontade de ficar. Isto é meu, é local, aqui eu me encontro, canta e toca minhas músicas. Diz que eu não sou a única, sou parte disso isso. Era dezembro, quente, suor correndo pelas costas, cadeiras de plástico grudando nas pernas, abanadores de papel improvisados pela plateia inteira – mesmo assim estávamos em Viena. Um senhor de fraque regia músicos e músicas de traje a rigor, ali se fazia música de verdade e era de verdade. Ali existia um propósito, uma forma de vida, um desafio à cultura prevalecente, ali existia um alento ao meu ser meio calejado já de tanta música sertaneja e agrestidão.
Com a Orquestra e o Coro veio uma amiga, que hoje é colunista aqui do nosso Cuore Curioso – dona Letícia Muniz dos Santos, nosso orgulho. Vieram outros amigos também, inclusive aquele senhor de fraque do qual posso dizer, sem falsa modéstia, que já esteve em nossa casa e com quem já tomamos muita cerveja. Com a Orquestra Sinfônica Jovem e o Coro Sinfônico de Lins, talvez sem ser sua intenção e com certeza não sendo seu propósito primordial, veio a vontade de ficar, pelo menos mais um tempinho. Veio a capacidade de nos localizarmos, ali, em Lins.
Queríamos ter, ao menos, a chance de vê-los tocar mais uma vez. Não importa se o mesmo, ou novo, repertório. Mas mais uma vez.
Depois, não sabíamos.
Tem gente com alma de navio. Há que se achar uma praia deslumbrante para aportar. A OSJL foi a nossa.
Tão lindo encontrar um porto em meio a tanto mar de solidão.A musica classica é bem isso, um lugar pra chegar.
Que post deslumbrante! Nem sei onde fica Lins, mas entendo perfeitamente o sentimento de perdição num lugar onde a gente momentaneamente não se achar. E a trilha que você pegou, o modo como você fala dela, a constrói em discurso e para minha sensibilidade – eu ‘ouvi’ sua amiga, o coral, a orquestra, eu estava ali também. Que enorme escritora você é, como escreve bem, sentimentos genuínos explodem nas frases e a gente se sente imediatamente próxima. Muitíssimo obrigada! (deixa eu tentar saber onde fica Lins ::)).
Um abraço,
Vera Queiroz
Olá, Vera!
Eu que agradeço as suas palavras, é tão bom saber o que pensam meus leitores, tão bom conhecer-te!
Lins fica no noroeste paulista, meio longe de tudo, uns 100km depois de Bauru. É uma cidade peculiar, que já viu um passado próspero, mas que infelizmente teve sua riqueza muito concentrada nas mãos de poucos para que florescesse como progressista.
Essa querida amiga, que não aparece apenas neste texto aqui no blog, seguiu a sua trilha também, e agora cursa Música na UFMG. Seguiu seu dom, e está sendo muito feliz nisso. 😉
Sente-se, fique à vontade: o blog é seu.