Acordamos hoje com um Sol incrível. Após a chuva de ontem, as nuvens de poluição de Beijing foram embora e nos deixaram com um céu azul digno de um imperador. Um excelente dia para um passeio a pé.
Queríamos ir perto, e queríamos fácil, porque amanhã é dia da Grande Muralha, e vamos de transporte público. Isso aí, essa é uma viagem low-cost. O Fernando disse que queria ir ao Templo Yonghe – fica há apenas uma estação de metro da nossa, deve ser perto.
Vamos lá.
Sabemos chegar de metrô, mas queremos ir a pé. Se andarmos apenas de metrô, a única coisa de Beijing que conheceremos são túneis, escadas rolantes e detectores de metal. É, aqui antes de entrar em qualquer estação, uma olhadinha nas suas bolsas.
(Um a parte: olhadinha estilo China – se tiver um monte de coisa no carrinho da Sara, ninguém nem olha)
Mas continuando: queríamos ir a pé. Demos aquele pit-stop na recepção do hostel apenas para confirmar que podemos andar até lá. Esta é a regra mundial: se a distância for apenas uma estação, caminhe. Mas aqui é Beijing, vai saber a distância entre as estações.
Três atendentes depois, sabemos que é só seguir reto na frente do hostel e estamos lá. Distância estimada: 1km.
Seguimos. Impressionantemente, atravessando a rua principal que cruza a frente do nosso hutong, parece que estamos em outro mundo: Calçadas! Árvores! Lojas! Nem parece que andamos apenas uns 100m. A China compartilha com o Brasil o título de terra de contrastes.
Lá pelas tantas, cruzamos um portal. Lindo. À esquerda, chegamos a uma bilheteria, toda em chinês. “Escolada” pela experiência na Cidade Proibida no dia anterior, pego meu celular e mostro a página da Wikipédia à atendente: “is it here?”.
Ela faz sinal que sim e me pede dinheiro.
Entramos. Na entrada, à esquerda, um mapa dizendo que ali era um templo e uma escola imperial. Hummmm. Nada disso na página da Wikipédia, mas vai saber? Quando você está no local, sempre aprende muito mais do que na internet.
Andamos por tudo, procurando os templos budistas tibetanos que deveriam estar em algum lugar. Em algum lugar deveria haver um incensário nos esperando.
Encontramos estelas indicando o apontamento de servidores públicos, a repressão de revoltas, a troca do telhado por telhas amarelas – amarelo era a cor do imperador. Artistas pintando pacificamente.
Falo para o Fernando: finalmente uma atração em Beijing que não está lotada.
No caminho, toda uma ala dedicada a Confúcio e seus discípulos. 190 estelas registram ensinamentos confucianos – mais de 600 mil caracteres chineses. Levou mais tempo o trabalho de coletar o ensinamento de Confúcio – 12 anos – do que o de entalhar a pedra com eles.
Continuamos até uma sala em que o Imperador fazia seus pronunciamentos – linda. Até lá, nenhum sinal de incensário. Nenhum monge budista. Começo a pensar que não estamos onde deveríamos.
Até que uma moça diz “hiiii! You’re so beautiful” para a Sara.
Por que respondemos alguma coisa para ela àquela altura, é de se perguntar. Nós chamamos muito a atenção aqui, a Sara então, nem se fala. É incontável o número de pessoas que já pediu para tirar fotos com ela – até um monge budista no Palácio de Verão – e maior ainda o número dos que tiraram sem pedir.
São 3 dias de China, e já começamos a ignorar pedidos, ou simplesmente dizer não. Ela é tímida, não gosta muito de tirar fotos (apesar de adorar saber que gostam dela).
Por algum motivo, talvez a sua insistência em falar conosco, ou finalmente estarmos entrando no “modus viajandis”, ou qualquer coisa do destino, começamos a conversar. Pergunto: onde está o lugar destas fotos aqui – mostrando os incensários. Ela começa a rir.
Seu inglês não é muito bom, como dos reafirma nas próximas 2 horas, mas ela é capaz de nos dizer que estamos no lugar errado. Estamos em Guo Zi Jian – a Escola Imperial.
“Escolados”, arrã.
China dando tapa na cara de brasileiro.
Parece que o nosso Templo Yonghe fica na mesma rua, apenas mais à frente. Sabe-se lá quanto mais à frente. Ela levanta e diz: eu lhes levo lá!
Eu digo, não precisa – ainda temos coisas a ver aqui. Ela diz, vou junto. E nos mostra a sala onde está o Buda mais importante com todos os pedidos.
A estátua de Confúcio que não podemos fotografar.
A ponte e onde nela onde devemos passar – porque pessoas importantes passaram por ali. O imperador?
Ela diz tchau a um pessoal com um bebê e sai conosco. No caminho, quer me ensinar a dizer oi, obrigado e me desculpe em chinês. Elogia minhas tentativas. Diz que precisamos de um guia. Que está em Beijing por uma semana, e volta amanhã para sua casa – Hangzhou.
Já são mais de 1h da tarde, e lhe convidamos para almoçar juntos – mas antes temos que tirar dinheiro. Ela nos ajuda a achar um banco. Enquanto me espera sacar, anota as recomendações para irmos à Grande Muralha amanhã, de transporte público. Entrega este papel com todas as anotações – e o que iremos gastar em cada etapa – junto ao seu mapa da cidade. É um presente para nós.
Ela escolhe o restaurante e peço que selecione os pratos, para termos uma ideia do que pedir. Lá pelas tantas me fala que é enfermeira e trabalha num hospital, não tem filhos, tem um namorado. Vai embora amanhã, porque na semana que vem é Feriado Nacional e quer estar em casa.
Temos dois pratos de carne na mesa, os mais caros, e ela não come de nenhum deles. Todas as vezes que lhe ofereço ela agradece efusivamente e me diz: “i’m not very hungry”. Impossível.
Em certo ponto ela levanta – ainda não sei o seu nome – e começa a me mostrar fotos da sua cidade. Hangzhou é linda mesmo, me diz que o ar é mais úmido e flores estão por todo lado, deixando um odor bem diferente do que encontramos em Beijing. Depois, fotos do seu passeio do dia anterior: o Instituto de Tecnologia de Moda de Beijing. Ela me diz que quer aprender a fazer um vestido – e está buscando por um sapato hoje à tarde.
Queremos ir junto? Não, obrigada – ainda queremos ir ao Templo Yonghe.
Ela quer pagar a refeição, mas não deixamos. Agradece-nos profusamente e caminha conosco. Do lado de lá da entrada do templo, ela me abraça. Diz que vai ficar esperando entrarmos. Peço-lhe que me escreva e que se lembre de nós. Enviaremos as fotos.
Dizemos tchau.
Quando estou entrando no portal do Templo Yonghe, olho para trás. Ela ainda está lá, assegurando-se de que entramos no lugar correto. Pego a máquina rapidamente, quero registrar a imagem da nossa nova amiga chinesa, que mudou a nossa vida no dia de hoje.
Sem ela, teríamos pensado que era apenas mais um erro. Apenas mais 60 yuan jogados fora no lugar errado, entrando onde não queríamos ter entrado. Sem ela, nem sei se teríamos chegado ao lugar correto.
Enquanto ela nos olhava entrar no portal do Templo, um filme passou em slow-motion na minha cabeça. Sobre como erramos. O que pensamos quando descobrimos que estamos errados. Como lidamos com frustações. Como lidamos com a perda. Como pensamos que temos um script na vida – mas, no fim, não temos.
Não existe destino. Existem apenas escolhas – escolhas que fazemos a cada segundo, e que ditam as consequências e os caminhos que percorremos. Escolhemos falar com ela, mas isso era uma escolha muito fácil.
Por que ela escolheu deixar o seu caminho para guiar três estranhos? Ela tinha um propósito esta manhã – queria ver o templo, a escola imperial e procurar sapatos. Na sua lista, sem dúvida, não estava ajudar um casal de brasileiros e sua filha.
Enquanto pegava a máquina, para registrar este momento único, em que uma chinesa de olhar cuidadoso nos observava entrar no Templo Yonghe, um ônibus passou. Quando a vi novamente, havia se virado e seguido seu rumo.
No templo, acendi três incensos e fiz uma prece por ela. Gratidão – não falei muito sobre isso aqui no blog.
Hoje encontramos a hospitalidade chinesa. O querer ajudar. O SER humano, não apenas estar.
É, a China nos recebeu com braços abertos. Se queríamos acolhimento, encontramos.