MAMÃE, EU NÃO GOSTO DE VIAJAR – ou, NOSSOS FILHOS E NOSSAS ESCOLHAS

Estávamos no vôo para o Catar, que tinha começado lá pelas 3h da manhã. A Sara tinha dormido antes dele, mas despertou ao entrar no avião e só retornou a dormir longas horas depois – depois, inclusive, de papai e mamãe apagarem sem controle.

Quando eram já umas 7h pelo horário do Brasil ela estava no auge do cansaço. Eu lutava para não apagar novamente – e cumprir meu papel de mãe. Ela lutava bravamente, desenhando, vendo filmes, cutucando os pais.

Pedi: filha, vamos dormir? Está todo mundo tão cansado, a mamãe precisa muito dormir.

Ela vira para mim e diz: mamãe, você tem um blog de viagens, então você gosta de viajar. Eu não tenho um blog de viagens, então não gosto de viajar.

Sobrevoando a Turquia
Sobrevoando a Turquia

Fiquei atônita em inúmeras dimensões. Como ela sabe que o meu blog fala de viagens? Ela não dormir é uma revolta contra a viagem? Minha filha tem opinião sobre viagens? Minha filha é um gênio? (esta última é aquela esperança recorrente aos pais de que seu filho venha a ser um grande líder que trará luz ao mundo. Recorrente tipo: 17 vezes ao dia.)

Contudo, o nível mais profundo de reflexão foi: minha filha não gosta da escolha que eu fiz para a vida dela.

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Previsível. Tinha acabado de passar quase três anos longe dos avós, para então ir morar na casa deles. Tinha acabado de passar quase três anos longe dos primos, para então ir morar próxima a eles. Tinha acabado de ganhar uma mãe de volta – uma mãe que ficava agora em casa, que trabalhava numa mesa ao lado da sua, que poderia lhe fazer uma mamadeira para dormir à tarde ou explorar a chácara da avó em busca de aventuras pela manhã.

Quem, aos 4 anos, largaria toda essa conjunção de mudanças adoradas, em busca de uma viagem sem destino, para lugares onde não se conhece ninguém e nem se fala a língua?

Pode-se perguntar aos adultos: vocês largariam suas vidas estabelecidas para viajar pelo mundo? A resposta, a contar pela proporção sedentários x nômades, será predominantemente não.

Se adultos não fazemos tais mudanças de cenário com facilidade – e devo confessar que, no meio da sacolejada de 2h que pegamos sobre o Atlântico eu soltei uma lágrima pela vida que deixava para trás – aos 4 anos elas são duras. Muito duras.

A vida da Sara, basicamente, é a vida da família e da escola. Este é o mundo que ela conhece: quem brinca, alimenta, dorme, estuda, vive com ela. Abandonar esse mundo conhecido em troca de um prêmio distante – por que a China é longe, mãe? – é inconcebível nesta idade. Diversas vezes, os últimos meses, quando íamos ao supermercado, ou fazer qualquer compra no centro, ela preferiu ficar em casa, brincando com um dos avós.

Aos 4 anos, ficar em casa e brincar com alguém é o ápice da felicidade. Somente bem mais tarde é que nos tornamos complexos e nossos desejos passam a incluir viagens mirabolantes acompanhadas de comidas exóticas.

Nem que elas sejam sorvete
Nem que elas sejam sorvete (de pepino com limão)

Ontem me perguntaram como havíamos preparado a Sara para a viagem. Infelizmente, não temos uma boa resposta para isso, a não ser que ela fez algumas aulas de inglês e mostramos num globo onde era a China. A preparação maior, penso eu, teve a ver com viajar bastante, passear com ela, mostrar o mundo que tínhamos perto e longe de casa.

Como você prepara uma criança pequena para viajar, se ela nem entende ainda por que uma coisa fica longe da outra, ou que o dia antes de ontem não é ontem?

Parecia que esta preparação seria inútil – tudo o que a Sara precisa é ficar com os pais e se sentir segura. Brincar pode ser em qualquer lugar, comida a gente se vira. Viajaremos com calma, muitos dias em cada cidade, para poder dormir, descansar, comer, brincar, acostumar-se ao meio. Viveremos um pouquinho em cada cidade, não passaremos correndo.

Porém a Sara, dentro do avião, não sabe nada destes planos. Ela não sabe as surpresas que a esperam, e que tem parquinho (bem) mais bacana na Alemanha do que no Brasil. Ela não sabe que irá encontrar uma nova prima, que terá paciência com ela e lhe mostrará o alemão. Ela não sabe que ganhará um novo primo, que brincará com ela e lhe levará para passear. Um primo que, do meio do trabalho, mandará sugestões de filmes para ver no Netflix.

Ela não sabe que fará piquenique pela primeira vez na vida – piquenique que há 3 meses vem sendo postergado nas casas em que estava morando.

Nada disso ela sabe ao dizer para uma mãe exausta: eu não gosto de viajar.

Ela só sabe que a tiraram da casa dos avós, e que no avião não se consegue deitar direito, pois os descansos de braço não levantam completamente (pergunto: por quê, Catar Airlines?).

Ela só sabe que a escola ficou no Brasil. Que os seus coleguinhas ficaram em Lins. Que a sua cama ficou – ela nem sabe onde a cama está.

A Sara, ao me dizer “não gosto de viajar”, está me dizendo: mamãe, eu não gostei do que vocês escolheram para mim. Esta é a minha vida, não a sua, eu quero vive-la como eu quero.

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Parquinho em Giessen, Alemanha

E ela tem razão. Apesar do maior motivo do sabático ser justamente ela – trabalhava mais de 10h por dia, todos os dias, e via minha filha apenas aos finais de semana em que não estava trabalhando – o motivo da viagem é a minha própria sede de mundo.

Tem algo dentro de mim que enquanto não tiver visitado todos os países não se saciará. O sabático poderia ter sido qualquer coisa, um estágio numa floricultura, um tempo cuidando de gado, um mestrado. Cheguei a fazer um plano de vida para determinar que caminho tomar a partir da demissão – será mesmo que deveríamos viajar, me perguntava?

A sede de mundo tinha apenas uma resposta: todo o resto pode ser feito depois. Viajar é agora.

Então compramos passagem, aprontamos as malas e partimos para o outro lado do mundo, com uma conexão no meio.

Neste tempo todo, onde estava a Sara? Brincando com os avós. No colo da bisa. Tomando um quequê quentinho deitada no sofá, vendo TV. Andando de balanço na pracinha ao lado de casa.

A Sara estava feliz. Quando se revolveu o problema da mãe ausente, o restante se encaixou. Ela não precisava desta viagem para crescer, melhorar, ser ela mesma, ter insights sobre as pessoas do outro lado do mundo. Ela estava bem segura e feliz do jeitinho dela, brincando com as xícaras e pequenos pôneis e o urso chamado Isabella que já foi João Gabriel (um urso transgênero).

Ser pai, mãe ou cuidador é fazer escolhas. Fazemos escolhas sobre todas as dimensões da nossa vida, que impactam na vida da criança que estamos criando, e sobre a vida da própria criança. A cidade onde vivemos, o trabalho que escolhemos, os filmes que vemos, as roupas que usamos, a escola onde a colocamos, os amigos que temos, se temos ou não religião. Se frequentamos ou não um clube, a casa dos avós, dos primos.

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Não há vida sem escolhas. Também não há como trilhar um caminho para ver como vai dar, voltar, trilhar outro e recomeçar do zero, escolhendo o caminho que mais lhe apeteceu. Apesar de que podemos sim recomeçar, tantas vezes quanto quisermos, à altura da vida que quisermos, nunca recomeçamos do zero. Então, não há escolhas sem consequências.

Escolhemos quitar todas as dívidas, livrar-se da maioria das coisas, largar as amarras e ser livres no mundo. Escolhemos viajar, conhecer novos lugares, sermos desafiados pelas circunstâncias, viver uma vida cheia de aventuras, desconhecidos, imprevistos e previstos.

A Sara não escolheu nada disso. A Sara escolheu brincar com os avós, ir para a escola, tomar leite vendo TV.

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Ou correr para uma porta de aventuras em Giessen, Alemanha

Alguém pode levantar a mão e dizer: mas vocês são pais, tem o direito de escolher por ela. Sim, temos, e assegurado por lei. Crianças são consideradas incapazes perante a lei. Incapazes, pois precisam de cuidados e não podem ser abandonadas.

Incapazes, então nós temos o dever – não o direito – de cuidar delas.

E cuidar também é respeitar. Acomodar as vontades. Lembrar que é um outro ser humano, com seus desejos e expectativas. Respeitar esses desejos e expectativas e, dentro do razoável, como para qualquer ser humano, atendê-los.

Então, para a minha filha Sara, que sobrevoando o Atlântico me lembrou que sua vida é sua, deixo aqui uns compromissos.

Que iremos voltar. Que haverá diversão, brincadeira, risos, palhaçada, piadas. Que pararemos para tomar leite morno quando for preciso. Que evitaremos esses voos malucos e cansativos. Que dormiremos tantas horas quando quisermos e sempre que estivermos cansados. Que haverá sessões de vídeos com os avós, os primos e primas, as tias, o tio, a bisa. Que brincaremos de trenzinho nos aviões para passar o tempo.

Que você aprenderá muito com a viagem, tenho certeza. Mas que você aprenderá muito mais com o tempo que passarmos juntos.

Uma criança de 4 anos é a forma mais direta de ser lembrado que o mundo tem que ser simples.

 

 

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8 comentários sobre “MAMÃE, EU NÃO GOSTO DE VIAJAR – ou, NOSSOS FILHOS E NOSSAS ESCOLHAS

  1. Que bela reflexão. A amada Sara mostrou que nem tudo a gente acerta, por mais que assim queremos. Beijos

    Enviado por Samsung Mobile

  2. Com certeza a Sara pouco de lembrará da viagem, mas quando você contar coisas que aconteceram e olharem fotos da viagem será como viajar novamente e algum dia ela dirá ¨Eu estive na China¨e nada lembrará do desconforto ou da saudade dos primos, tios e avós.

  3. Adorei seu texto! Infelizmente, por algum motivo, nunca consigo curtir seu texto no blog. Quando curto, pede para criar um site address no wordpress. Aí dessa vez compartilhei no face. Você sabe por que não consigo simplesmente curtir? Anyway, quero desejar à vocês uma excelente viagem e dizer que acompanho seus textos e vejo, assim como antes, quando eramos mais próximas, o quanto você é intensa, questionadora e que isso é parte da sua essencia e te faz uma pessoa única!! Muito legal saber que em meio a tantos planos desse ano sabático, com tanto conhecimento, cultura, visão de mundo que isso irá proporcionar à vocês (e que é algo realmente muuuito legal), há uma mãe preocupada em proporcionar a sua linda Sara as coisas simples da vida! Beijos e sejam felizes!!Andréia

    Date: Wed, 9 Sep 2015 15:03:05 +0000 To: andreiabalieiro@hotmail.com

    1. Oi, guria! Este curtir du WordPress não funciona mesmo como o do Face – tem que criar um username do próprio WordPress para curtir por aqui. Se você criar, conseguirá curtir, mas é uma chatice mesmo :(.
      Obrigada pelo que você escreveu, obrigada por você nos acompanhar por aqui. É um desafio fazer desta viagem um sonho para ela também, estamos nos esforçando :). Acho que hoje ela entendeu um pouco: conheceu uma prima e um primo novos e se apaixonou por eles!

  4. Cris, essa deve ter sido só o primeiro “conflito” do famoso dilema dos pais quererem “o melhor para os filhos” e esta ser uma opinião unilateral. Torço do fundo do meu coração que com carinho e perspicácia você irá converter o sentimento dela num grande bônus, mas não se torture mesmo que eventualmente, daqui a 20 anos a Sara lembre que a viagem foi um porre, rs. Não temos opiniões assim sobre algumas imposições dos nossos pais? Só que isso vai ser bônus do mesmo jeito, não é? O tempo nos dirá!

  5. Caí nesta página muitos anos depois do texto ser escrito. Identifiquei-me com a Sara, visto que, quando eu tinha a idade dela, meus pais gostavam muito de descer para o litoral, ou para visitar algum parente, ou para acampar. Naquela época eu simplesmente detestava a ideia de viajar. Passava dias me sentindo ansiosa apenas pensando que iria sair do meu núcleo de proteção (vulgo lar) e pegar uma estrada rumo ao desconhecido. Claro que ao chegar na praia tudo mudava, porque eu adorava brincar na praia, mas até chegar lá eram dias de muito medo e insegurança.
    Por mais que meus pais achassem que era “coisa de criança” esse medo e que “eu me acostumaria”, não foi o que aconteceu. Tanto que, até hoje, mais de 40 anos depois, eu ainda detesto viajar, e evito totalmente qualquer ideia de estar longe de casa.
    Desenvolvi um trauma? Possivelmente. Mas no fim, procuro me respeitar e respeitar minha aversão a viagens, tendo consciência de que viajar é uma experiência fascinante e viciante, mas que eu não sou a pessoa mais indicada para o serviço.

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