Sentada à noite na recepção do hotel, buscando um pouco de informação sobre os parques da região e ainda tentando encontrar que bendito templo tibetano era aquele que havia visto no primeiro dia, escuto uma moça ocidental dizer para a Sara: “how beautiful!”.
Ela e sua amiga chinesa haviam chegado hoje à Jiuzhagou, com o ônibus que iríamos pegar em alguns dias. Cabelo molhado, queria muito que ligassem o ar quente do quarto, ao que o dono do hostel respondeu: não funciona.
A temperatura cai abaixo de 2°C à noite e ele te dão um lençol elétrico e cobertor. Mais nada.
Começamos a conversar em inglês, mas passamos para o espanhol quando descubro que ela é do México – ei, não é sempre que se encontrar uma oportunidade de desenferrujar a lengua por estas bandas.
Ela me pergunta sobre o Parque Nacional de Jiuzhaigou, e eu confirmo que é o lugar mais lindo do mundo. Estudante de Medicina no México, está por aqui fazendo um tratamento com medicina tradicional chinesa para uma doença congênita que tem nos olhos: é a primeira vez que tem progresso em algum tratamento, dentre os muitos que tentou.
No dia seguinte, após nosso passeio a cavalo por Zhongcha, estamos descansados o suficiente para irmos a Huanglong. Vou até a recepção e informo que quero agendar o passeio. A moça me diz: “por que não vê com aquela menina do México? Ela vai para lá também e vocês podem dividir o carro.”
Lá vou eu bater à porta do dormitório. Nem sei seu nome ainda – Graciela – mas, aliadas na nossa latinidade, combinamos para o próximo dia.
Acontece que elas não querem voltar a Jiuzhaigou, e sim parar no caminho para seguir viagem. O hotel quer cobrar 120 yuan por pessoa pelo passeio. Com elas não voltando, eles querem 60 yuan mais de mim e do Fernando para “compensar” o não retorno das duas (como se o táxi, de Jiuzhaugou, não tivesse que voltar de qualquer forma).
Elas têm o telefone de um outro taxista, e ele nos cobra apenas 400 yuan pelo carro. Nos pegará às 7h30 próximo ao hotel e nos trará de volta o final da tarde. Um carro com motorista, o dia inteiro à disposição, por cerca de R$ 250 – é muito barato.
O pessoal do hostel não gosta quando desmarcamos o passeio, faz cara feia, de criança emburrada. Mal sabíamos nós que isso iria nos custar algo no dia seguinte – mas isso é outra história.
Esta aqui é de como fizemos uma viagem independente para as Lagoas das Fadas. E de quebra, vimos o tal Templo Budista Tibetano que tanto havia me encantado no primeiro dia.
Quem viaja com crianças exercita a imaginação – bom, talvez se vai para a Disney, não tanto. Estamos aqui, no meio do nada, montanhas nevadas para cada lado, rocha calcária, lagos azuis e verdes, neve: um dos lugares mais lindos do mundo. Mas como “vender” um lugar assim, sem parquinho, sem desenho, sem guti-guti para uma criança de 4 anos?
No caso de Jiuzhaigou, foram as lagoas com nomes diferentes – ela ficava esperando pela Lagoa do Panda ou a Cachoeira do Cardume de Pérolas, e isso ajudava a dar mais energia às perninhas que desciam as passarelas.
Em Huanglong, pelas fotos que vimos, pegaríamos várias piscinas coloridas. Então foi a história das piscinas das fadas – um lugar encantando, onde as fadas iam tomar banho, e se ficássemos bem quietinhas talvez conseguíssemos vê-las.
Funcionou 🙂
Pegamos o táxi na fria manhã seguinte – e nem esperávamos o frio ainda mais intenso que pegaríamos na montanha – e seguimos. No carro, a Sara já começou uma amizade com Graciela e sua amiga – Juju – acupunturista do hospital em que Graciela faz tratamento. São muitas fotos de caras e bocas para contar a história dessa amizade.
Começamos a subir para sair de Jiuzhaigou em direção a Huanglong, e vemos que nevou à noite – as árvores têm neve sobre os galhos mais altos.
Mostro para o motorista o templo e peço se podemos parar um pouco por lá para fotos, ele concorda. No caminho, ainda fazemos uma parada numa cidade toda de pedra – que também virou apenas turismo.
Descubro que o Templo se chama Gami, e que em 2012 uns monges se atearam fogo em protesto contra as rígidas normas impostas ao Tibet (em estado de invasão chinesa).
Quando chegamos ali, me desgarro do grupo e vou explorar, o mais rápido possível, o que há ao redor. Eu sabia que havia uma estátua dourada enorme em algum lugar.
No caminho, as casas que eu tinha esperado encontrar em Jiuzhaigou – simples, de pau-a-pique ou sabe-se lá como se chama na China, não turísticas.
Subo até onde penso ser o ponto mais alto do local e lá está ela. Um Buda esplendoroso, convidando para entrar – mas não posso, temos que seguir viagem. Corro de volta para o carro e seguimos.
Não por muito tempo. Aparentemente, algum líder do governo central está passando por estas bandas, então o que faz a polícia?
Manda todos os carros para o acostamento esperar a passagem da digníssima criatura. Como os chineses são os mais ansiosos de plantão – ganham fácil de mim e do Fernando – ficamos no acostamento cerca de meia hora ATÉ que passou a caravana de carros pretos.
Mereço? O digníssimo líder, tal qual Imperador da China, não pode colocar as rodas do seu ilustre carro no chão ao mesmo tempo que os reles mortais.
Imagina que alguém reclamou? Claro que não – se reclamar, vai preso. Graciela e eu estamos estupefatas: se fosse no México, tal político já levaria fruta podre e ovo no vidro do carro. No Brasil – vocês sabem.
Quando paramos pela SEGUNDA vez, em Chuanzhusi, (ah, vem cá, ninguém merece, hein?), Juju finalmente fala algo. Os líderes políticos deveriam estar no cargo para ajudar o povo – não atrapalhar a sua vida.
Ufa!
Por pouco pensava que os chineses achavam tudo isso normal.
Descobrimos que esta parada tem causa mais nobre: a passagem da caravana de um casamento parou facilmente uns 100 carros (verdade!).
Seguindo viagem e começamos a subir uma das cadeias de montanha mais lindas que já vi. É quase apenas pedras, mas a estrada – de curvas para testar corações mais afoitos – a corta em vários sentidos e transforma tudo num balé de carros e ônibus.
Lá pelas tantas, quando estamos já comemorando a proximidade da chegada, adivinha. Nova parada. Parece que o parque está muito cheio, então a Polícia está parando os carros antes para desafogar o trânsito mais à frente.
Tudo bem: ao menos ali temos uma paisagem que já valeria a viagem. Aproveitamos para dar uma corrida e tirar umas fotos no fim da passarela – e voltamos correndo para o carro.
Alguns minutos depois e estamos em Huanglong. É só comprar o ticket, subir no bondinho e se divertir.
Alguém disse bondinho aí? Estou dentro!
A Área Cênica de Huanglong é menor do que o Parque Nacional de Jiuzhaigou, mas é igualmente linda – e diferente. Pensamos em não fazer este passeio, mas ainda bem que mantivemos o plano: ambos os lugares são únicos e especiais em si. Visitar um não invalida visitar o outro.
Você pode subir pelas passarelas – sim, novamente passarelas – e aí boa sorte, amigo, porque você chegará com seus próprios pulmões a 3.576 m de altitude. Ou você pode pega um bondinho supermoderno e bacana, com uma vista linda, que te deixa a ¾ do caminho para as piscinas, por 80 yuan.
A seu critério (a Graciela queria subir a pé). Mas a gente ADORA as modernidades chinesas nos parques – é claro que ajudam quando você tem uma criança, mas creio que mesmo sozinha eu teria ido de bondinho. É tão mais… fácil lindo 😛
Conforme o bondinho subia a montanha, uns 8 minutos de viagem, ficava mais evidente que havia nevado por estas bandas também. Lá em cima, a surpresa!
Neve fresca por todos os lados!
É a primeira vez que o Fernando e a Sara veem neve – e que emoção 🙂 ! É pouquinha, mal cobre o chão, mas é neve suficiente para chamar de neve, fazer bolinhas e tocar no pai e na mãe.
Nessa hora, nem precisei das fadas.
Seguimos pelo caminho até a primeira parada, que te dá uma vista geral do que será a caminhada posterior. A água desce do desgelo das montanhas e forma piscinas com o calcário presente. Há templos budistas e restaurantes – passarelas por todo o parque.
Continuamos no meio das árvores até que a passarela começa a subir. Em segundos somos lembrados da altitude, mas seguimos. A passarela com degraus baixos ajuda na subida.
Quando por fim estamos no topo, o deslumbramento. É o lugar mais lindo do mundo.
(E agora, caro leitor e estimada leitora? Para quem vai o título: Jiuzhaigou ou Huanglong?)
Piscinas de todas as cores, começando com um azul bebê, mudando para verde água, algumas em tons terrosos, se espalham. A Sara fica procurando fadas por ali –talvez tenha muita gente para elas aparecerem, lhe digo.
Não canso de tirar fotos: lugares como este exalam mágica e realização. Conseguir chegar aqui, do outro lado do mundo, viajando independentemente, sem nem ter comprado um guia do Lonely Planet sobre a China, cria um sentimento muito poderoso de plenitude e autoestima.
Quantos milhões de anos se passaram até que a água lentamente foi depositando calcário suficiente até formar as primeiras piscinas e fazê-las crescer?
São piscinas travertinas – do mesmo material que vemos na Basílica de São Pedro, ou que você tem na pia do banheiro em casa. Sem exploração, contudo, deixadas na natureza, elas foram um espetáculo quase surreal.
Quando começamos a descida para ver o restante das piscinas, resolvemos comer o nosso arroz com carne autoaquecido. As meninas nos esperam comer se deslumbrando com a paisagem.
O templo budista é pequeno, mas dá um toque inusitado à Área. Contudo, num lugar assim, não é de se admirar que o povo queira agradecer aos deuses em que acredita – dá para pensar em benção.
As piscinas inferiores são maiores, mais profundas e mais cheias de folhas – o que traz a cada uma características diferentes. É um dia intenso de emoções, sem aquele momento em que você “cansa” da beleza que está vendo, por acha-la normal.
Em Huanglong, a sensação de fora deste mundo está sempre presente, não importa o tempo que você ficou olhando o parque.
Lá pelas tantas começa a nevar e tiramos nossas providenciais capas de chuva – compra do Fernando – que também ajudam a amenizar o frio intenso e o vento. Você está a mais de 2000 metros do nível do mar, montanhas nas costas, água por todos os lados, vento batendo na cara e neve descendo do céu.
Não tem com estar mais feliz do que isso 😛
Cada platô de piscinas é finalizado por uma cachoeira diferente. E, é claro, pela montanha de chineses que querem tirar fotos em sua frente.
Falando sério: os chineses perderam a noção confuciana da contemplação. Agora é só chegar em frente a qualquer coisa – qualquer coisa mesmo, tipo loja colorida, arbusto, entrada de parque, estrangeiros brancos-cara-pálida – e clicar. Eles nem olha – só clicam. Tudo é fotografia.
E não têm noção nenhuma de ceder a vez ao outro – ficam bravos se não puderem tirar 15 fotos na frente do que acham bonito. Todas as poses: sozinhos, casal, sozinho novamente, sorrindo, olhando para o lado, apontando o lago, levantando as duas mãos, fazendo o 2. Uma senhora estava tirando a 14ª foto e eu esperando. Valha-me Buda: fui ao lado e comecei a clicar o que eu achava por bem – e ela, inconformada com a minha audácia, me empurrou!!!
Sim, a China é deles e ninguém tasca (mas as minhas fotos saíram 🙂 ).
O meio da montanha é marcado por um restaurante: comida de buffet meio estranha, noodles, bolachas – dou graças a Buda por termos trazido o nosso arroz auto-aquecido. Aguardamos as nossas amigas comerem, mas não dá para ficar lá dentro. Apesar do frio, decidimos esperar fora, porque o restaurante é o reduto para os que são proibidos de fumar no parque (os únicos dois lugares que visitamos em que os chineses respeitam as regras de não fumar são o Parque de Jiuzhaigou e a Área Cênica de Huanglong).
Nas partes mais inferiores da montanha dá para sentir o clima completamente diferente – é de se espantar o quanto esquenta e a paisagem muda conforme descemos. Aqui e ali o parque construiu quiosques para descanso e é uma beleza o que a natureza construiu nos telhados.
Quando eram já umas 17h o taxista liga – acho que já estamos atrasados mais de 2h (culpa do figurão do governo, não nossa!). Já cansados, mas ainda deslumbrados com tudo por ali, caminhamos para a saída. Lá fora, uma multidão de guias espera pelos seus grupos.
Minha cabeça lateja – é a altitude dando as caras novamente, junto ao frio que pegamos na hora da neve e do restaurante.
Não importa.
Em breve estaremos dentro do carro quente, rumando a Jiuzhaigou, e a dor ficará para trás, como normalmente ficam os pequenos inconvenientes quando finalmente nos encontramos com um lugar extraordinário.
Permanente, fica apenas a memória de um dia incrível.
Do momento em que se tem absoluta certeza de que viajar foi a decisão correta, e de que viver qualquer dia sem ter conhecido Huanglong seria abdicar da mais humana das características: a curiosidade.
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Trans-lum-bran-te
Adorei a palavra nova!!!