9H NUM ÔNIBUS DE LINHA NA CHINA (COM CRIANÇA!)

Poucos destinos podem rivalizar com a fantástica Jiuzhaigou. Mesmo assim, ao invés de empacotar as malas e seguir de volta ao Brasil, pegamos um ônibus de 9h até Chengdu, para continuar vendo a China.

Você anda de trem por aqui e pensa: que país avançado! Estações modernas e bem equipadas (hum… apenas não os banheiros) abundam, o sistema de tickets é integrado entre estações do país inteiro, os trens são rápidos, pontuais e seguros.

Contudo, não existe trem entre Jiuzhaigou e Chengdu. É avião – que, quando queríamos sair, já estava mais de 1000 yuan por pessoa, ou ônibus, custando 150 yuan. Como o que temos de moeda de sobra é tempo, e não dinheiro, optamos pelo ônibus.

Compramos no próprio hotel, cujas recomendações no Booking.com indicavam que era um operador confiável.

Rá.

No dia anterior, havíamos desistido de fazer um passeio com eles, para contratar um taxista por conta própria. O Fernando fez o cancelamento e me contou que não ficaram muito satisfeitos – mas também, queriam nos cobrar 60 yuan a mais porque as outras duas pessoas do tour não voltariam a Jiuzhaigou. O que eu tenho a ver com isso, até agora ninguém respondeu.

Quando chegamos deste tour, à noite, o dono do hostel diz que no dia seguinte está tudo certo para o ônibus para Chengdu. Que nossas passagens são os assentos que compramos (a Sara teve que pagar valor de adulto para poder sentar num ônibus de 2 andares, em um dos únicos 3 assentos frontais).

Que ele “possui” Jiuzhaigou – é seu dono.

Nesta hora, eu deveria ter suspeitado de algo. Essa afirmação em tom de deboche só poderia querer dizer que ele sabia o que havíamos feito – e que queria se vingar.

No dia seguinte, 6:20 da manhã, ele nos aguarda na recepção para nos levar à rodoviária. Opa, não é na rodoviária? Ah, ônibus passa aqui perto, tudo bem.

Vamos de carro até uma rotatória e esperamos. O sol ainda nem nasceu e comemos um café da manhã improvisado dentro do quarto, com direito a Nescafé chinês – que mais parece café com leite – frutas e pão embalado. A Sara nem parece que acordou às 5h: está desperta e atenta a tudo.

Esperamos um pouco na fria manhã de outono – faz uns 5°C em Jiuzhaigou – até que o ônibus aparece.

É uma tranqueira. São 4 assentos na frente, e dois deles estão parcialmente impedidos por um armário do próprio ônibus. Passarei as próximas 9h tentando não machucar meu joelho, enquanto encontro uma posição confortável para a perna direita.

viagem de ônibus na China
O possante, em uma das paradas

Os assentos são colados, e o Fernando divide o seu lado com um chinês – ao menos, magrinho – ao contrário de sentar conosco.

Durante os primeiros 40 min, ele pragueja contra o “Dono de Jiuzhaigou”. Nas madrugadas tem nevado e, com a chegada da manhã, podemos ver as árvores cheias de neve, ou orvalho congelado, e as montanhas mais distantes, com seus picos nevados.

Mesmo assim, o Fernando pragueja – está muito irritado. Quer de alguma forma encontrar conforto após tamanho desaforo. A sensação que temos é de que tal Dono – um galinho garnizé que pensa um pouco demais de si mesmo – está rindo nas nossas costas.

É tamanha a certeza de que estamos no ônibus errado, que duas pessoas tinham tickets para os mesmos assentos que nós.

Em determinado momento, vemos que a raiva não dará frutos, ao menos não dentro do ônibus. Temos instrumentos para trazer à tona esta história e prevenir outros viajantes, mas eles não se encontram dentro do ônibus. Agora, é sentar e apreciar a paisagem – que é linda – enquanto descemos vagarosamente para Chengdu.

O ônibus vai lotado de gente de todos os tipos – casais, famílias, idosos (ainda não pegamos aqueles ônibus cheios de porcos, galinhas e afins, mas algo me diz que mais para a frente…). Junto ao motorista, no assento improvisado do acompanhante, vai sentada uma mulher cheia de casacos e blusas de lã. A princípio penso que é uma trabalhadora da região e que logo descerá, mas ela nos acompanha até Chengdu – e, mesmo quando chegamos ao calor das planícies, após 7 ou 8 longas horas de viagem, mantém a coluna ereta e todos os casacos no corpo.

A resistência que os chineses têm ao calor é impressionante.

Rodamos vagarosamente, poucos 70km/h é o pico de velocidade que alcançamos. São cerca de 400km no total, em estradas razoavelmente boas, uma viagem que no Brasil não levaria mais de 5h.

Acontece que estamos na China. E na China, tudo é comércio, já não falei?

Todo comentário que lemos a respeito deste ônibus na internet fala que ele para a cada 2h para ir ao banheiro e comer algo. Devemos ter pego um motorista com bexiga hiperativa então: nosso ônibus parou religiosamente a cada 1h.

A cada 1h, religiosamente, todos os passageiros descem, e vasculham as tendas ao redor para comprar coisas – principalmente alimentos. É época da colheita, e a estrada está repleta de vendedores de frutas deliciosas de todos os tipos.

tenda barraca beira estrada fruta venda china
Barraquinhas vendendo frutas na estrada: algumas coisas são mundiais!

Pensa que o motorista para em um lugar bacana assim para comprarmos frutas, como fizeram os motoristas do ônibus entre Huaraz e Lima?

Não, baby, eles gostam mesmo é de biboca.

Sério, cada lugar mais tenebroso que o outro – num deles, você entrava e era obrigado a dar a volta numa espécie de corredor formado por mesas, com bandejas plásticas brancas oferecendo os mais variados tipos de comida: chás, pés de galinha cozidos, carne seca e outras coisas ainda não reconhecíveis para mim.

Fiquei pensando, por que paramos aqui? Acho que não fazia nem 1h da última parada – o motorista tem que estar de brincadeira.

Acontece que lá fora, um chinês de chapéu de cowboy lava os vidros do ônibus – aliás, ufa! Muito sujos. Sabe-se lá o que mais ele não ganhou de brinde por trazer viajantes por ali.

Limpeza nos hotéis, talvez. Mas a estrada tem que estar bem varridinha!
Limpeza nos hotéis, talvez. Mas a estrada tem que estar bem varridinha!

Seguimos viagem e, conforme descemos, a vegetação muda e a temperatura sobe. O rio, cuja nascente vimos ao descer de Chuanzhusi para Songpan, agora já está correndo bravamente em meio às montanhas pedregosas das laterais.

É como ver uma pessoa crescer – começa pequena, tímida. Cresce para uma fase turbulenta, cheia de vigor e desafios, para estabilizar mais adiante num fluxo calmo, porém profundo e poderoso.

O ônibus para o almoço num restaurante estilo buffet, 25 yuan por pessoa. Pegamos uma bandeja, palitinhos, a famosa tijelinha para o arroz e vamos à caça de alguma comida reconhecível e de carne para dona Saritcha.

Tudo é muito apimentado, mas o salsão refogado e a couve-flor assadas estão muito bons. O arroz normalmente é sem gosto e sem sal por aqui, mas este bateu o record. Ele não é sem gosto, é com gosto negativo – rouba o gosto das demais coisas.

Deixo mais da metade do que peguei no prato (o que normalmente não é meu hábito, apesar de o Fernando pensar que sim 😛 ) e viu em direção ao ônibus. Precisamos ir ao banheiro.

O Fernando já resolveu o problema num matinho ali perto, mas eu e a Sara… não dá. Olho ao redor, tentando encontrar a porta do banheiro, e nada.

Dou uma volta, e vejo uma mulher entregar dinheiro a um senhor e desaparecer atrás de uma porta feita de pano. Deve ser ali.

Pego dinheiro com o Fernando, puxo a Sara pelo braço e vamos. Abro a porta de pano, e o que encontro?

banheiro masculino china beira estrada
O banheiro masculino – e ainda paga!

Vários cubículos, sem porta, apenas de cimento, um ao lado do outro. Uma canaleta passa por baixo de todos eles, unindo-os. Por ela, escorre água.

É, queridos, sistema de esgoto chinês, vai coletando os resíduos humanos de cubículo em cubículo, continuamente.

Ao menos a água é corrente e o cheiro não tão forte. O primeiro tem marcas recentes na parede, alguém não se adaptou com a comida. Entramos no que nos pareceu mais limpo e, bem, pedi que a Sara não olhasse para baixo e fosse rápida.

Saímos e voltamos ao ônibus – mais estrada nos espera. Àquelas alturas, o stress de Jiuzhaigou estava ficando para trás: a paisagem cada vez mais linda, o clima cada vez mais quente – estamos chegando ao Sul, finalmente!

planície chengdu estrada caminhão ônibbus
Começando a chegar às planícies próximas a Chengdu

O ônibus ainda conseguiu fazer mais 2 paradas – sendo uma para alguns incautos descerem para ver os pandas à tarde (o pior horário) – mas chegamos em Chengdu ainda dia.

A Sara, empolgada pela visão dos pandas no dia seguinte, apenas se diverte no ônibus. Viajar com criança é ver o mundo sob uma outra perspectiva, todo o tempo. Ela não se importa com as 9h, com a sujeira, com a lentidão, com as inúmeras paradas. Se há comida, água e alguém lhe dá atenção, seu mundo está completo.

Nós, adultos, é que tornamos tudo muito mais complexo.

É claro que o ônibus não parou na estação rodoviária, mas numa lateral dela. Contudo, é Chengdu, capital de Sichuan: se não acharmos um táxi, tem outro, se não gostarmos do hotel, tem outro.

Pegamos um táxi e ele nos deixa na porta do hotel, que é grande, lindo, suntuoso e aceita cartão de crédito – tudo o que não tivemos até agora no país. Conseguimos uma barganha no Booking.com para um quarto duplo sem janela, café da manhã incluso, num hotel bem localizado de Chengdu.

Porém, quem precisa de janela quando finalmente encontramos uma cama macia, um chuveiro com BOX (aleluia, Buda!!!!) para não molhar o banheiro inteiro, um café da manhã em que fazem omeletes ou ovos fritos ou noodles na sua frente, ao seu gosto? Um hotel em que temos café, este líquido miraculoso que na China tem preço de vinho, incluso.

Pensar que pagamos mais pelo hotel em Jiuzhaigou do que por este, dá uma dor imensa no coração.

Deixamos as malas, trocamos as roupas de inverno por sandálias, vestidos, bermuda, e vamos encontrar um restaurante para almoçar/jantar. Ali próximo tem uma rua de pedestres, e para lá vamos.

Enquanto caminhamos rumo ao restaurante – que, por fim, cansados de decifrar menu em chinês e cansados pela longa viagem, foi Mc Donald’s mesmo – um novo sentimento de amor me invade. Esta é uma cidade real, com gente real. O hotel é bom, os taxistas usam o taxímetro. As ruas são impressionantemente limpas, há prédios imensos e restaurantes bacanas por onde olhamos.

Pessoas caminham, comem, bebem, compram roupas Gucci, Prada, Versace. Quando o Brasil comemorava a sua primeira loja Chanel, a China já tinha quase 10. Não se engane: a China pode ser suja e pobre, mas ela é milionária e estilosa também.

Um imenso colar de luz adorna a entrada de um dos shoppings. Um panda escalando a frente de outro não nos deixa esquecer por que estamos ali.

shopping panda chengdu china
Chengdu: terra dos pandas (e dos shoppings) gigantes

Amanhã, contudo, os veremos. Hoje é só se ambientar.

Comer algo, tomar uma cerveja gelada no final do dia, tomar um banho bom, fazer um chá no quarto e dormir.

Realmente, poucos destinos rivalizam com Jiuzhaigou – e talvez isso tenha feito com que o povo local seja um pouco descuidado, um pouco arrogante, um pouco exagerado com os preços. Nós amamos os parques que visitamos mas, se pudéssemos escolher, teríamos passado longe da cidade.

Jiuzhaigou perdeu completamente a identidade de cidade, é apenas um playground turístico para atender à profusão de gente que passa por lá.

Chengdu, em que se chega apenas buscando ver os pandas e quase nada mais, nos encantou por ser quem é: uma cidade real, organizada e linda.

Nada mal para quem viajou 9h para chegar até aqui!

 

E você? Qual foi a viagem mais longa de ônibus que fez? Aposto que tem uma história bacana para contar: escreve aí nos comentários!

 

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5 comentários sobre “9H NUM ÔNIBUS DE LINHA NA CHINA (COM CRIANÇA!)

  1. A China real é impressionante pois parece exatamente como imaginei.
    Ótimo, estou viajando junto, pronto já sei!
    Se houvesse alguma dúvida, agora ela já não mais existe.
    A China como ela é !!

  2. Que experiência! Que situação! Ainda bem que vocês tem espírito de aventura e que a amada Sara está aproveitando tudo. Beijos

  3. Estou apaixonada pelos relatos de vocês! Cheguei procurando informações sobre o Vietnã (estou indo com a família na semana que vem, ansiosa) e quando vejo tô aqui, três horas depois, lendo todas as suas aventuras!

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