Em certa empresa na qual trabalhei, havia um caminho longo entre a portaria e o estacionamento. Admitia-se que os funcionários adentrassem com seus carros, e havia placas claras sinalizando a velocidade máxima permitida: 20 km/h. As placas estavam lá quando entrei e continuavam lá quando fui embora.
Quase ninguém respeitava: auxiliares, líderes, supervisores, coordenadores, gerentes avançavam como se desrespeitar aquele limite nos seus 20 m causasse alguma diferença no tempo que levariam para chegar a seus destinos. Muitas vezes tido como aquele a dar o exemplo, o próprio diretor era um dos mais velozes.
O assunto era tão amplamente disseminado, que o RH começou a pedir que mencionássemos este comportamento, conforme o caso, nas avaliações de desempenho das equipes. Nessas horas, escutei de tudo: não concordo com este limite, me disseram que vai mudar ou, o melhor deles, meu carro não anda tão devagar (ao que a pessoa foi aconselhada a reduzir a marcha).
Outro dia, caiu uma ponte de madeira no Rio Grande do Sul, um caminhão e um carro foram ao rio. O rapaz do carro, apesar de submerso, se salvou. Após a notícia no local, o programa cortou para o estúdio, onde a âncora do telejornal fez sua primeira pergunta: e quem é responsável pela fiscalização? Ela nem perguntou de quem era a responsabilidade sobre a manutenção e conservação da ponte. Bem ao modo brasileiro de ser, cortou caminho e foi direto à fiscalização.
Em ambos os casos, perturba-me essa dependência da fiscalização para que a lei seja cumprida. Já escutei, por exemplo, que nossas leis são ótimas, uma pena que não temos fiscalização suficiente. O cidadão, em plena consciência e rede nacional, fala para o microfone do jornalista que conhece a lei. Só não cumpre porque não tem ninguém olhando.
É tal a cultura de fiscalização local que usamos termos como “pegar” quando nos referimos a novas regras. Será que esta pega? Ou será mais uma das que fica apenas escrita num Código ou Manual qualquer, para ser questionada quando de sua revisão – mas que, até então, não teve seus benefícios sentidos pela população?
Em termos mais simples, vigia-se se manipuladores de alimentos lavam suas mãos após irem ao banheiro. Sim, hoje, pleno século 21, homem já foi à Lua há quase 50 anos, pessoas conscientes, que não fazem uso de drogas alucinógenas (ao menos no trabalho) e que sabem amarram seus próprios cadarços, ainda não lavam as mãos após ir ao banheiro. Pasme.
Certa vez, conversando com o Diretor Global de Pesquisa e Desenvolvimento de uma multinacional, sobre a questão de fazer regras internas gerais funcionarem nos diversos países, tive a seguinte resposta: em países anglo-saxões, regras são cumpridas por que existem. Temos problemas nos latinos, que parecem precisar sentir que essas regras são para valer. Comentários preconceituosos e generalizações à parte, até que ponto não estamos vivendo nossa rotina para fazer cumprir este mantra?
Exemplos cotidianos abundam: faixas de segurança para pedestres desnecessárias de tão desrespeitadas, vagas para deficientes que viraram piada, trocos inexatos, não pagamento de impostos devidos, mentiras no imposto de renda.
Não adianta apontar que a fiscalização é pequena, insuficiente, não exigente o suficiente, e continuar jorrando água e químicos para dentro do leite. Não há fiscalização suficientemente grande, rígida ou avançada quando causamos o dolo com toda a intenção de fazê-lo. Quando usamos nossos lindos e abundantes conhecimentos para nadar num mar de mediocridade, alinhando-nos com os que apenas buscam mais uma casquinha para ser tirada, ao invés de gerarmos produtos e serviços incríveis que mudem o jogo de verdade.
Enquanto estamos aqui arquitetando um novo plano para passar a perna no Governo, no vizinho ou no nosso concorrente, tem 1000 pessoas ao redor do mundo criando um jeito melhor de fazer o seu trabalho. Enquanto buscamos esquemas de fiscalização cada vez mais onerosos aos nossos próprios bolsos, o mundo se torna ágil, eficiente e simples. Enquanto precisamos de aprovações de todas as instâncias para ter certeza de que estamos fazendo corretamente, o mundo se desburocratiza.
Não temos mais como brincar de gente grande nas Organizações de Comércio e Nações Unidas da vida, dizendo que o Brasil é um país de verdade, e continuar dando uma de criança mimada que quer tudo para si. Não dá para se fantasiar de funcionário e funcionária de alto escalão, e não respeitar a velocidade limite nos 20 m que separam o estacionamento da portaria.
Eu sonho com um Brasil diferente: amistoso, sorridente, caloroso e gentil. Mas também leal, persistente, respeitoso e, principalmente, honrado.
Honra deveria estar na base da nossa educação. Se temos honra, respeitamos os outros e também exigimos respeito.
Um país não é um ser amorfo, flutuando sobre as nossas cabeças, vestindo a bandeira como bandana e assobiando o hino. Um país é a soma de seus cidadãos e, no final das contas, um país é você. E eu.
Que sejamos amanhã um pouco mais leais, persistentes, respeitosos. E, principalmente, honrados.
Ps.: Proporei um exercício: hoje, até o final do dia, aja como se a honra fosse o seu valor mais importante. Amanhã, venha aqui nos comentários e me conte como isso lhe afetou.
Pois é, Cris. Acabo de ler este post minutos depois de discutir se era possível aceitar um plano de ação de uma empresa que se compromete a diluir lotes de produtos com níveis de micotoxinas acima do nível permitido com lotes bons para manterem sempre a média dentro da faixa legalmente aceitável. Sonho muito em sermos plenamente honráveis um dia.
É, Ju, a situação dos consultores é ter que influenciar para o bem, sem ter 100% do controle para a execução dele…
O pior é que essa mistura tem precedentes… olha esta palestra num evento do ILSI sugerindo flushing para redução de patógenos em 2010, e citando casos em que o FDA aceitou este tipo de mistura para aflatoxina… http://www.ilsi.org/NorthAmerica/Documents/FOOD%20MICROBIOLOGY/2010%20IAFP%20Presentations/04-Moorman%20Presentation.pdf
No Brasil o mais importante é a lei de Gerson – temos que levar vantagem em tudo, mesmo que seja para causar um acidente fatal.
Só vejo uma saída para este lamentável quadro, Hermantina… cada um de nós começar a agir com um pouco mais de ética e honra nas suas rotinas. Quem sabe assim revolucionaremos o Brasil, de dentro para fora, e sem necessidade de armas?