MINHAS IRMÃS SÃO “LÉSBICAS BEIJO NO OMBRO PRO RECALQUE”

Minha irmã do meio nunca gostou de bonecas (nem eu).

Ela também não ligava muito para batom, maquiagem, “se arrumar” – da nossa infância, a memória constante era dela pedindo carrinho atrás de carrinho. Acredito que, após anos de tentativas frustradas, nossos pais simplesmente cederam ao óbvio: para agradar à filha mais nova, carrinhos eram o presente ideal.

Tínhamos uma turma enorme no prédio em que nascemos em Porto Alegre – caçador, pega-pega, esconde-esconde, passa anel eram as brincadeiras que reinavam. Também fazíamos vendas de “produtos” devidamente “confeccionados” num bazar na frente do prédio: adesivos feitos de recortes da Fluir com contakt, revistas velhas, sabonetes com pinturas.

Meninos e meninas brincavam juntos, e tudo era possível (principalmente fugir do zelador pelas escadas do prédio durante o horário após o almoço, quando era proibido criança brincar – sim, naquele prédio havia sesta).

Mais tarde, enquanto eu alinhava um amor platônico atrás do outro, uma paixonite sem sentido atrás de um namoro complicado, minha irmã do meio preferia o videogame, o basquete, o vôlei. Parecia melhor alheia àquilo, e fazia todo tipo de levante contra o que era para mim o mundo “normal”, incluindo uma famosa greve de banho que durou, supostamente, pelas contas da nossa mãe, 7 dias (eca!).

Os gênios diferentes, a distância física (quando me mudei para SC e depois SP) e as escolhas foram nos distanciando. Por fim, eu nem sabia mais quem era a minha irmã – só comecei a me dar conta de que havia algo novo no ar quando, já entrando na vida adulta, ela apareceu com uma amiga, e essa amiga passou a dividir o apartamento com ela.

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Não, não é essa amiga. Essa aqui é a namorada linda da minha irmã.
Quando íamos para a praia, a amiga ia junto e a porta estava sempre trancada. Infelizmente (ou felizmente), a amiga não deu certo de uma forma meio dramática. Foi mais ou menos no fim que eu me dei conta de que a minha irmã era lésbica.

 

Temos outra irmã, nascida temporona quando já estávamos quase na adolescência.

Ela foi uma menininha adorável, brincava de bonecas e gostava de Pokemon. Teve um potro de estimação – o Trovão – que viu nascer e depois domou. Era só chamar o Trovão pelo nome que ele vinha galopando pelo pasto, de dentro do mato onde estava se refrescando, a crina paralela ao chão, uma alegria de reencontrar a amiga da sua vida.

Nascida quando poucas outras crianças nasciam na família, teve todos os brinquedos do Kinder Ovo que foram lançados naquela época (e eu penso que ela nem sequer comia o chocolate). Eles ficavam expostos na cristaleira aqui de casa, na sala de estar, como troféus.

Teve dois namorados sérios, incluindo um que foi servir um ano no Exército e por quem, nas duas vezes em que se afastou dele, chorou copiosamente. Ela o amava com toda a certeza que apenas 17 anos de experiência poderiam lhe dar.

Quando passou na faculdade, ele a acompanhou, mudou de curso, e foram morar juntos. O que era para ser, aconteceu: mais ou menos 1 ano depois, o namoro terminou.

 

Nessa época, começaram a surgir relatos de festas, experimentações, testes. Nomes de meninas começaram a pintar. Um dia, ela falou a uma mãe incrédula: um dia pode ser que eu traga uma menina aqui, ok?

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Um dia ela trouxe um amiga. Para sempre 🙂

Algum tempo depois, ela engatou outro namoro com um colega de curso, e esse durou também seus dois anos, para se desmanchar em algo meio vago para mim.

Após um período fora do país, ela volta para o curso, e começa a falar sobre meninas – parece que a Festa da Descoberta da Felicidade tinha começado.

Palavra que me vem à mente: rodo.

Passando.

Nessa época, resolvo admitir que esta não é uma moda passageira de experimentação. This is the real deal.

Minhas duas irmãs são lésbicas.

Para falar a verdade, elas talvez tenham sido somente as duas últimas adições ao grupo: antes delas, muitos amigos haviam deixado para trás as próprias vergonhas e se assumido. Outros, tinham entrado na minha vida pelas portas mais diversas. De fato, quando olho ao redor, percebo que tem um monte de homossexuais convivendo comigo, e eu com eles.

Contudo, ter duas irmãs lésbicas torna o assunto só não mais pessoal do que se fosse a minha filha. Não existe hoje para mim posição intermediária – ou possibilidade de desviar do assunto. Elas são minhas irmãs, o elo mais estreito que se pode ter com outra pessoa que não pai, mãe, filho, filha, e as duas são lésbicas.

É ame-as ou deixe-as. Amo…

 

POR ISSO, NÃO DÁ PARA LEVAR NA BRINCADEIRA PIADINHA DE GAY

A não ser que seja engraçada alguma piadinha de hetero também: como a do macho-alfa, ou da piriguete, ou da dondoca, ou do super-tímido, ou do impotente, ou do corno.

Se todas foram engraçadas, e estiverem na mesma proporção, posso rir também da de gay. A experiência me diz, contudo, que as que esculhembam com o que é traço normal da personalidade do outro – e desta forma, o humilham – são frequentemente as de gays.

Então, passo. Este humor não me faz rir.

Mas o amor me faz sorrir. Muito :)
Mas o amor me faz sorrir. Muito 🙂

 

POR ISSO, NÃO CONSIGO FICAR QUIETA QUANDO ALGUÉM DIZ QUE É HORRÍVEL VER DUAS ATRIZES DE RENOME SE BEIJANDO NA NOVELA

Quando escuto, penso que estamos de volta aos anos 60, quando a população se revoltou de tal forma contra o excesso de negros numa novela que o autor inventou uma doença para aniquilar metade da senzala.

Quando alguém diz: “ah, mas também não precisa ficar se mostrando/de mãos dadas/se beijando” ou qualquer outra referência a eles se enfiarem num buraco para EU não ver o que é a vida, penso na Rainha Vitória. Penso naquela gente puritana que nem sorriso dava em fotos, e que não podia demonstrar afeto em público.

É, alguém que me diga que um homossexual não deve demonstrar carinho em público poderia bem estar vivendo em 1890. Não em 2015.

 

POR ISSO, NÃO ESCUTO CALADA ENQUANTO UM COLEGA ME DIZ QUE SE UM DOS SEUS TRÊS FILHOS HOMENS SE ASSUMIR GAY, O EXPULSA DE CASA

(até porque, há uma bela chance do último ser).

O que há de tão condicional neste amor paterno que, frente à menor diferença, ele inexiste? Esses dias, quando comecei a tecer minhas ideias sobre o assunto, me perguntaram se queria isso para a Sara.

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Eu não tenho que querer nada. A Sara é uma pessoa independente de mim. O que ela fará com o seu corpo e como terá prazer – não me competem. Quero que ela seja feliz – e se for feliz com mulheres, homens, ambos, ou qualquer outra combinação que o meu horizonte limitado não consiga ainda ver, tanto faz.

Pais tem que apoiar os filhos, não planejar a vida deles.

 

POR ISSO, O DEBATE SOBRE A TAL “IDEOLOGIA DE GÊNERO” NÃO PASSA NEM UM POUCO DESPERCEBIDO

Àqueles pais, ou futuros pais, que ainda pensam que uma aula sobre identidade sexual será tão incisiva que será capaz de tornar seu filho gay – minhas lástimas. Nem vocês poderão influenciar neste sentido, por mais duros, rígidos, impositivos ou coercivos que forem.

O que era para ser, já foi.

A Natureza, na sua perfeição, assegurou-se de ter a maior variação possível dos genes de todas as espécies – e parece que é ela quem predispõe a orientação sexual dos indivíduos. Veja que poderosa é a Ciência: ela põe por terra todos os achismos, crendices e estupidezes humanos.

As pessoas não escolhem ser gays ou lésbiscas ou transexuais ou bissexuais. Se escolhessem, é provável que nem existissem tais orientações – tamanha é a rejeição que o indivíduo tem que suportar quando se assume.

Vi uma amiga lutando por anos até que se assumiu à família. Os dias antes da conversa foram os mais angustiantes, que luta interna ela travou para ter coragem suficiente. A mãe simplesmente disse: eu sempre soube.

Por essas e outras, eu quero sim que se discuta gênero na escola. Se na escola não pudermos trazer a aceitação, a novidade, o acolhimento – de onde virá o progresso? Da casa das famílias tradicionais que fazem sempre a mesma coisa?

Acho que não.

 

MINHAS IRMÃS SÃO EXEMPLO DE “BEIJO NO OMBRO PRAS RECALCADAS” NA VIDA REAL

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beijo no ombro, na bochecha, na boca! beijo que é bom e eu gosto!

 Ao meu lado, tem duas pessoas que não estão nem aí para as normatividades da sociedade (aliás, normatividade = palavra que apenas aprendi com elas).

Enquanto estou aqui, dizendo às pessoas: seja livre! Vá atrás dos seus sonhos! Viva uma vida sua! – elas estão fazendo isso no dia-a-dia: sendo livres, sendo como são e pouco se lixando para o que os outros pensam.

Quem hoje tem “nojo”, “ojeriza”, “raiva” de gay ou lésbica, tem por quê?

Talvez porque, a cada beijo apaixonado no meio da rua, é confrontado por uma pessoa que, ao contrário de si, teve coragem para ser quem é.

 

 

Ah, e só para registrar: não, não foi o carrinho que a minha irmã ganhou que fez dela uma lésbica.

Ela ganhou um carrinho porque já era lésbica.

 

ps.: Esta é o Dia Nacional da Visibilidade Lésbica. Mostra esse artigo aqui para aquele seu amigo ou sua amiga mais quadrado/quadrada, quem sabe eles repensam suas ideias? 

 

 

 

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Um comentário sobre “MINHAS IRMÃS SÃO “LÉSBICAS BEIJO NO OMBRO PRO RECALQUE”

  1. Lindo texto, lindas irmãs! Mas hm… será que ela não ganhou carrinho porque… simplesmente… talvez… gostava de carrinhos?
    Não vejo onde carros ou qualquer outro tipo de objeto ou brinquedo que não aqueles que são vendidos em sex shop tenham a ver com orientação sexual. (“toma, minha filha, você é lésbica então como prêmio pela tua orientação sexual você tem direito a um carrinho!”… not. rs ) (Aliás, nem mesmo aqueles que se vendem em sex shops, porque eles tem a ver com prazer e não com sexualidade.)

    Eu sou uma mulher predominantemente heterossexual (ver: Escala Kinsey – http://lugardemulher.com.br/aceitando-o-proprio-tesao/) e dirijo carros e motos.

    Mas atenção! Dirigir e fazer sexo ao mesmo tempo é perigoso, crianças! (http://www.menshealth.com/sex-women/sex-while-driving)

    1. Muito bom, Le! Não quis expandir este ponto, porque o texto já estava demasiado longo, mas concordo contigo que o carrinho independe da orientação sexual. O fato é que minha irmã, até para marcar território e mostra a que veio, rebelava-se contra a coleção de bonecas que tínhamos (e com que nenhuma das duas brincávamos no final das contas).

  2. Sempre defendi a ideia do SER FELIZ. O resto aceita ou sai da minha cola. Minhas sobrinhas, tuas irmãs, são felizes e é isso que importa.

    Enviado por Samsung Mobile

  3. Quando eu era pequena (anos 80) algumas pessoas diziam, ao ver em público (ou na TV) um casal inter-racial mostrando seu afeto: “Dá até nojo de ver uma lindeza branquinha beijando um macaco desses”… hoje você pode ser processado por manifestar algo assim! A passos lentos acredito que outros tipos de “nojo” serão inaceitáveis num futuro mais acolhedor.
    E um post bacana como este, poderá ser apenas uma história para recordar!

    1. é verdade, lembro BEM disso – até porque no final dos anos 90 eu mesma namorava uns caras sempre mais morenos – ou cor de cuia, como diziam as minhas irmãs. é um absurdo o quanto a nossa sociedade era arcaica num passado bem recente – e no presente também. Mas sigamos, “tenho fé na rapaziada”!

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