Oi, Fulano,
Queria poder dizer que esta é uma carta alegre, mas não. Faz tempo que nossas vidas estão entrelaçadas, e gostaria até de saber se um dia elas voltariam a estar, mas hoje isso me é negado.
Eu fico pensando naqueles primeiros dias, quando não conseguia nem pensar em me afastar de ti. Ficava deitada na cama contigo, adiando a ida ao banheiro, pensando em formas de costurar os dois corpos, assim não passaria nem um segundo respirando outro ar que não o teu. Nem dirigir direito eu conseguia, tal a ânsia por ter a tua mão na minha.
Há anos que isso não existe entre nós. Mas existia o carinho. Um dia falei que tu eras o meu melhor companheiro. Era contigo que queria viajar, conhecer a vida, descobrir o mundo. Tu eras a pessoa ao meu lado, com quem finalmente me imaginava feliz – e era. Lembro da nossa primeira viagem, como me transformou. Finalmente podia dividir o que estava vendo. Eu, sempre tão sozinha, agora tinha uma interface de mim que não era eu. Tu eras um modo novo de olhar o mundo. Uma nova perspectiva.
Há anos que isso não existe entre nós. Ficou apenas o rancor pelos erros um do outro. Ficou a dor pelas perdas. Ficou a culpa das decisões erradas. O marasmo dessa nossa vida de velhos.
Então, este fim de semana, quando cruzaste a porta de casa com mais um livro amarelado, foi o basta para mim.
Eu quero ver o mundo, quero sentir o vento na cara, quero gritar para ouvir meu eco numa montanha alta, quero ter medo e me arriscar. Cansei de ficar aqui, lendo sobre a vida dos outros. Cansei de ver filmes sobre histórias que aconteceram com os outros. Esta mania de sebos, este empoeirar a casa, esta ode ao passado, me cansam a cada segundo. Um tique do relógio, um taque do relógio: são lembretes do que estamos perdendo aqui, afundados nesta vida que não é nossa.
Hoje não quero mais companhia. Hoje não quero mais a tua mão na minha. Hoje não quero mais costurar corpos ou respirar o teu ar.
Por isso tudo, e mais coisas que nem digo aqui, te digo adeus, e que não me procures. Carrego de ti os primeiros anos, e me basta. Carrega de mim o que quiseres, que seja feliz, mas distante.
Esta história chega aqui ao fim. Podes escrevê-la onde quiseres, ou quem sabe um dia eu a escreva.
E tu a encontrarás, muitos anos depois, num desses sebos que tanto amas.
Adeus.