Trilha Sonora
Eu passei no me primeiro vestibular quando tinha 16 anos e nem tinha cursado o último ano da escola. Passei em primeiro lugar para Direito numa Universidade da região. Nas férias de julho do ano seguinte, passei novamente, mas agora em 1º lugar geral da mesma Universidade – e ainda não havia completado o atual Ensino Médio.
Quando foi para valer, passei em 4º lugar para Engenharia na Federal e completei o curso em 2º lugar entre os meus colegas. Eu tinha certeza absoluta de que eu era a pessoa mais inteligente que estaria sentada em qualquer sala que estivesse.
Então veio o primeiro emprego e, com ele, a primeira grande decepção. Não era aquele o mundo perfeito de engenheira que eu havia imaginado, e eu não achava que estava aprendendo muito (ahhh a imaturidade, tão eficiente em ter certeza de tudo…). Bem, pensei: tenho que trocar de emprego, o que farei? Estavam na moda os programas de trainees, e para a maioria deles, era o último ano em que eu poderia me candidatar. Comecei a fazer as inscrições.
Em um dos processos, fui bem. As provas eram em Curitiba, e eu pagava do meu bolso as passagens. Ao fim da que deve ter sido a 5ª etapa, a psicóloga me disse: eu sei que você está pagando por tudo isso, então vou te dizer que está indo muito bem. Continue, você tem grandes chances. Isso me deu mais certeza.
Veio uma prova que era uma apresentação sobre Responsabilidade Social. Eu levei a apresentação impressa, em CD e em disquete (sim, faz um tempo isso). Eu sabia a apresentação de cor. Em português e inglês. No final da apresentação, todas as referências ao que havia sido argumentado estavam listadas. Brilhante.
Na última etapa, a empresa arcava (finalmente) com os custos. Ficamos, eu e mais 16, num hotel de negócios no Batel, para um dia inteiro de dinâmicas e entrevistas. Éramos os 17 de 14.000 inscritos.
No final do dia, eu nem precisava receber a carta para saber: não havia passado. A menina ultra-inteligente, que tinha respostas para tudo, que tinha lido e ouvido tudo, que falava inglês tendo pouco estudado, não entrou. Eu havia falado para a tal psicóloga que adorava viajar e que queria conhecer melhor Curitiba, mas não tive nenhuma vontade de sair do bar do hotel enquanto esperava o voo. Eu era uma menina derrotada.
Quando a carta chegou, caí no chão chorando. Ainda havia uma pequena luz de esperança – apagada pela carta formal e carinhosa que a empresa havia mandado.
Esta não foi a primeira vez que não ganhei algo, afinal minha completa inépcia para os esportes me impediu de seguir uma carreira brilhante como jogadora de vôlei. Estava acostumada a perder nos esportes.
Esta, porém, foi a primeira vez que perdi algo importante no meu campo de atuação: o campo das ideias, das palavras, da inteligência, da sagacidade. E isso sim, levou bastante tempo sendo processado.
Perdi porque não entendia nada de negócios, muito menos de pessoas. Essa era a minha arena EM TERMOS. Para entender um problema de lógica ou de engenharia, era. Para recomendar, aos modos de uma consultoria, o que o Carrefour deveria fazer frente à expansão do Pão de Açúcar, eu estava em campos desconhecidos.
Nesses eventos aleatórios que ao longe parecem fazer parte de uma engrenagem, acabei indo trabalhar a cerca de 90km de Curitiba, numa cidadezinha de predominância alemã chamada São Bento do Sul. E decidi que deveria fazer um MBA, para entender de fato o que estava acontecendo das empresas. E fui fazer análise, para me livrar de algumas cargas e aprender um pouco sobre mim e sobre as pessoas. E fui trabalhar com pessoas diferentes de mim, e conhecer suas vidas, e tentar ajudá-las, para conseguir me conhecer e ajudar a mim mesma.
Ao final do processo, eu havia digerido. Aquilo dentro de mim que era certeza, não era mais. Uma montanha de dúvidas ocupou seu espaço – dúvidas que me trouxeram aqui. Essas dúvidas eram a maturidade se chegando, abrindo as portas, dizendo que estava entrando. Mas também dizendo: eu caminho lentamente, e por vezes volto atrás. As certezas da imaturidade foram se amedrontando, se apequenando, até quase desaparecerem (às vezes espiam por uma janela).
Olhando para trás, agora ao longe, aquele evento que parecia aleatório, na verdade não foi. Não ter passado naquele programa de trainees (convenhamos, nem é algo tão grande assim que faça alguém chorar) foi o evento necessário e suficiente para que um monte de coisas bacanas se desenrolasse. Caso tivesse passado, provavelmente teria tido uma posterior oportunidade de me olhar no espelho – porém, mas dolorosa.
É como se, a cada dia, a vida fosse nos desafiando mais. Quando éramos crianças, viver era apenas jogar bola, pular amarelinha, brincar de aventureiro, passar numa prova, entrar na faculdade. Desafios simples. Conforme crescemos, parece que o nível do desafio vai aumentando: sustentar-se, encontrar trabalho, manter o casamento, criar um filho, suportar a rotina, quebrar as regras da normalidade. É a vida querendo saber se a gente está aqui a sério, ou só de brincadeira.
Esta perda veio justamente no momento em que eu precisava me olhar no espelho e buscar um novo patamar. Não tendo perdido antes, era impossível saber onde estavam minhas lacunas, meus desvios, minhas burladas, minhas engambeladas – as coisas que escondia até de mim.
Ter medo da perda é totalmente humano e suficientemente poderoso para impedir a ação. O sentimento, contudo, deveria ser o oposto: não querer perder, mas abraçar a perda inevitável como uma lição, um passo para a melhora.
Fiquei pensando agora nos meninos da Seleção Sub-20 que recentemente “perderam” o título do Mundial para a Sérvia – ao receberem a medalha de prata, alguns dos atletas rapidamente a tiraram do pescoço. E na Seleção da Alemanha, que perdeu a Eurocopa na primeira fase em 2000, para se reinventar e, bem, você sabe o que ela fez em 2014.
Como ganhar uma medalha de prata é perder? Como isso é triste, ou desonroso? O que estamos ensinando, e aprendendo, como povo?
Que saibamos mais entregar-nos à perda.
Que tiremos lições das perdas, que sejamos mais Alemanha.
Que sejamos mestres de nós mesmos e tomemos as rédeas de nossas vidas, e façamos o nosso melhor. Mesmo assim, quando o melhor não ocorrer, que tenhamos elegância e beijemos nossas feridas abertas, como fez o técnico Maradona em 2010.
Que sejamos bons e elegantes. Que saibamos acolher as perdas quando ocorrerem.
Saber perder é um domínio do ser.
Um comentário sobre “VIVENDO E APRENDENDO A PERDER”